Janeiro já se foi e chega fevereiro trazendo “cara nova” à política brasileira.
O governo Bolsonaro começa a governar. Afunilam-se as reformas, realmente necessárias e inadiáveis.
A grande questão é como fazer tais reformas.
Por mais que prospere a tese de desvalorização da classe política, o único caminho para a consolidação e estabilidade das reformas será o debate e soluções finais definidas no “coração da democracia”, que são as Casas Legislativas, no caso o Congresso Nacional.
O legislativo é a “cara”, a “fotografia” do povo brasileiro, com virtudes e defeitos. Ninguém chega lá por nomeação. O voto é livre. E as deformações existentes na sua composição, conduzem à reflexão de que a culpa é de quem votou e não da instituição em si.
Há uma relação ambígua, de amor e ódio, entre o eleitor e o deputado, senador e vereador. Se de um lado propaga-se a ideia de que “todos calçam quarenta”, por outro há a certeza de que seria muito pior, sem o Legislativo aberto e efetivamente livre.
Sou defensor intransigente do Legislativo, sem prejuízo da importância do judiciário e do executivo. Cabe esclarecer que na concepção original de Montesquieu, não existem propriamente três poderes.
O poder é indivisível e pertence ao Estado, que por si divide as suas tarefas e funções de legislar, administrar e julgar.
Ao Estado cabe preservar a liberdade política, justiça social, liberdade religiosa, propriedade com fim social, pluralismo cultural, regular o mercado, o devido processo legal e outros valores que assegurem uma democracia estável.
Nos últimos anos, a democracia brasileira correu graves riscos de instabilidade. Em momentos difíceis, após o impeachment de Dilma Rousseff, houve declaração inadmissível de tresloucados, desafiando a ordem constitucional e ameaçando o uso da via militar como única solução.
A garantia da normalidade democrática, que conduziu às eleições livres de 2018, foi assegurada pelo então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, um nome que deve ser respeitado na história nacional.
No momento certo de conter os insurretos, ele declarou com ênfase: “não há qualquer possibilidade” de intervenção militar… o emprego nosso será sempre por iniciativa de um dos Poderes. As Forças Armadas defendem a manutenção da democracia, a preservação da Constituição, além da proteção das instituições”.
A posição firme do general Villas Boas evitou que o Brasil mergulhasse no abismo de um regime autoritário.
Na atual conjuntura de consolidação das mudanças necessárias ao país, a maior responsabilidade será dos legisladores. O judiciário não faz a lei, aplica. O executivo, cumpre. A missão de legislar exige vocação e conhecimento das matérias em debate.
O legislador não pode ser do tipo “eu não vou, vão me levando”. Terá que conciliar soluções técnicas, com o sentimento social. Essa é a grande diferença entre tecnocratas e políticos. As reformas não podem penalizar mais uns, do que outros.
O perigo será a tecnocracia instalada nos governos tornar-se autossuficiente, “dona da verdade”, acima do “bem e do mal” e dizer-se (o que não é verdade) imune a qualquer tipo de pressão.
No caso da inadiável reforma da previdência (proposta oficial não conhecida), as soluções finais haverão de priorizar os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa, previstos na Constituição (art. 1º, III; IV e 170).
Essas regras norteiam o sistema das relações com o “mercado”, exigindo a “divisão justa de sacrifícios” entre as várias categorias sociais, como meio de superar crises.
Não se justifica o critério da “mão única”, no qual o vilão-responsável sejam os trabalhadores, servidores públicos e beneficiários da previdência.
O déficit realmente existe e precisa ser corrigido.
Entretanto, é necessário ir fundo na identificação das “causas”, que têm origem em vários fatores.
O principal deles são os “vazamentos”, de bilhões e bilhões de recursos públicos, decorrentes de “fraudes e privilégios”, historicamente “justificadas” sob variados pretextos, sem prestação de contas.
Infelizmente, o risco iminente é que os assalariados, servidores públicos e beneficiários da previdência social “paguem o pato” sozinhos, apenas com pequenas “medidas” futuras de combate aos desvios, que não alcançarão as situações passadas, com aplicação de severas penalidades e até sequestros de bens.
Como justificar-se, por exemplo, administradores públicos e privados descontarem a previdência de assalariados e servidores e não recolherem os valores correspondentes?
Como justificar-se a desoneração da previdência (soma superior a 600 bilhões de reais), imaginada como meio de combate ao desemprego, sem que tal objetivo tenha sido atingido?
Outras indagações semelhantes poderão ser feitas, sem resposta, diante da caracterização, no mínimo, do crime de apropriação indébita.
Por tais razões impõe-se, de saída, uma rigorosa apuração dessas responsabilidades, por mais que o “mercado” lute para jogá-las debaixo do tapete.
Regra geral, a tecnocracia defensora dogmática do “Deus mercado”, somente leva em conta déficits, custos e a lei da oferta e da procura, inegavelmente fatores importantes.
Entretanto, há o outro lado da moeda, que é a natureza humana, da forma como Deus criou.
Nesse ponto coloca-se a importância fundamental do político nas democracias, no sentido de preservar valores e lutar pela justiça social, sem extremismos.
Somente a Democracia e os Parlamentos livres permitem o amplo debate.
Resta uma esperança na ação “moderadora” do Presidente Bolsonaro e do seu vice Mourão. Ambos têm origem na classe média e pertencem a uma instituição de credibilidade inequívoca (Forças Armadas), vinculada ao serviço público, cuja atividade não é destinada ao lucro.
O caminho que se espera com a implementação das mudanças necessárias será o da “divisão de sacrifícios” e não somente “alguns” pagando o pato, no final.
O tecnocrata não depende do povo, embora seja fundamental na formulação das propostas e soluções, merecendo respeito.
Todavia, a decisão final será sempre do político, obrigado a prestar conta de quatro em quatro anos, com o dever de sempre garantir a distribuição justa de oportunidades e diminuir a distância entre os mais ricos e os mais pobres da sociedade.
Essa é a diferença fundamental entre política e tecnocracia.
Ney Lopes- jornalista, advogado, ex-deputado federal e professor de Direito Constitucional (UFRN)