Caixões azuis com as três letras CLT (abreviação de Consolidação das Leis do Trabalho) e um punhado de cruzes faziam parte do aparato levado pela oposição à Câmara dos Deputados na última quarta-feira, para protestar contra a aprovação da reforma trabalhista do governo Michel Temer.
Um artigo de abril de Vagner Freitas, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior entidade sindical do país, já acusava em seu título: “Reforma Trabalhista destrói a CLT”. O projeto de lei – que mexe em cerca de cem artigos dessa legislação, nascida em 1943, no governo Getúlio Vargas – recebeu, ainda assim, o aval da maioria dos deputados e agora segue para o Senado.
Ao contrário do que o recente debate faz parecer, porém, a CLT não é considerada intocável pelo movimento sindical. Muito pelo contrário – a CUT, em especial, nasceu nos anos 80 com fortes críticas à legislação trabalhista varguista e chegou a defender sua extinção e o fortalecimento da negociação direta entre trabalhadores e empresas.
Para a entidade, a legislação é uma “faca de dois gumes”. De um lado garantiu direitos importantes, como carteira de trabalho, limite de horas (em geral 8 por dia) para a jornada de trabalho, férias remuneradas, salário mínimo e indenizações por acidentes.
Por outro, também estabeleceu uma série de regras para a atuação dos sindicatos, como a unicidade sindical (proibição de haver mais de um sindicato por categoria na mesma região), exigência de registro das entidades no Ministério do Trabalho e contribuição sindical compulsória.
A CUT é historicamente contra esses três pilares, pois entende que foram adotadas para “amaciar” e “controlar” o movimento, nota a secretária de Relações do Trabalho da central, Graça Costa.
Nessa linha, a resolução do 3º Congresso da CUT, em 1988, falava em abolir a legislação varguista: “O avanço da luta dependerá da força dos trabalhadores na conquista de suas reivindicações, abolindo a CLT e a intervenção da justiça do trabalho e do Estado. A luta e o fortalecimento do sindicato são os únicos caminhos para a classe reivindicar e definir melhores condições de vida e trabalho”.
A resolução propunha ainda, no lugar da CLT, a adoção de um “Código Nacional de Trabalho (…) simples, que seja compreendido, discutido e assumido por todos os trabalhadores brasileiros”.
O diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap, órgão que representa interesses de sindicatos e centrais sindicais no Congresso), Antônio de Queiroz, destaca o contexto do surgimento da CUT, ainda na ditadura militar (1964-1985).
“O pressuposto da CUT, criada em 1983, portanto em plena ditadura militar, era de retirar o entulho autoritário que também estava presente na CLT, o que de certa forma o governo Sarney (1985-1990) fez, como proibir intervenção (do Estado) nos sindicatos, permitir negociação coletiva, que na época não se permitia”, explica Queiroz.
Segundo ele, é balela dizer que a CLT é uma legislação anacrônica, dos anos 40, pois já foram aprovadas centenas de mudanças em seus artigos.
‘Negociado sobre legislado’
A resolução do Congresso da CUT de 1988 defendia também contratos coletivos nacionais de trabalho, mediados pela central, que garantiriam patamares mínimos de direitos e serviriam de base para acordos entre patrões e empregados sindicalizados, dentro de cada empresa.
Uma evolução dessa proposta, o Acordo Coletivo Especial (ACE), chegou a ser formalmente apresentada ao governo Dilma Rousseff, em 2011, com o argumento de que daria mais segurança jurídica nas negociações entre trabalhadores e empresas.
A legislação hoje permite negociações coletivas envolvendo categorias inteiras, no entanto, não prevê acordos específicos dentro de cada empresa – por isso, muitos deles acabam anulados na Justiça.
“Um passo fundamental para inovar no campo das relações de trabalho é reconhecer que a atual legislação não dá conta de resolver todas as demandas e conflitos, tampouco superar e atender as expectativas dos trabalhadores e empresas em situações únicas, específicas, para as quais a aplicação do direito no padrão celetista não mais alcança resultados satisfatórios”, diz a cartilha da CUT que explicava a proposta de ACE.
Sobre a anulação dos acordos, o documento dizia ainda: “Por um lado, os trabalhadores e empresários interessados no avanço democratizante são punidos; de outro, são premiados o conservadorismo e a inércia. Vitória para os segmentos mais atrasados de ambos os polos da relação capital-trabalho”.
Já a reforma de Temer estabelece, sob esse mesmo argumento, a permissão do “negociado sobre o legislado”, ou seja, prevê que alguns parâmetros da relação trabalhista fixados na CLT possam ser revistos diretamente entre empresas e trabalhadores em acordos que prevalecerão sobre a lei – a proposta é duramente criticada pela CUT.
Incoerência?
Mas por que então a CUT se opõe frontalmente à reforma de Temer? Segundo os sindicalistas ouvidos pela BBC Brasil, porque a proposta da central previa mecanismos de fortalecimento dos sindicatos, para garantir que a negociação entre empresa e empregados se daria em igualdade de condições, enquanto a proposta do atual governo faz o contrário.
O projeto de lei aprovado na Câmara prevê que empresas com mais de 200 empregados poderão escolher representantes não sindicalizados para firmar os acordos. O temor da CUT e de outras centrais é que isso facilite a cooptação desses representantes pelas empresas.
Além disso, a reforma extingue abruptamente a contribuição sindical obrigatória, sem prever outras fontes de recursos. A CUT é a favor do fim do impostos obrigatório, para que os trabalhadores decidam eles mesmos como manter os sindicados, mas defende que isso seja feito gradativamente e que seja regulamentada outra forma de remuneração, atrelada aos acordos (contribuição negocial).
“Liberdade de negociação com real manifestação de vontade é legítimo, não tem problema. Do jeito que foi proposto isso não existe, você entrega os trabalhadores ao deus dará”, diz o diretor de Documentação do Diap, Antônio de Queiroz.
Segundo Graça, a proposta da CUT era que os acordos coletivos permitissem negociar condições melhores que as previstas em lei, enquanto a reforma proposta vai permitir o contrário.
“Num momento de crise dessa, você vai ter uma negociação com o patrão em que o trabalhador vai estar de joelho”, crítica.
Entre os pontos que passarão a poder ser negociados, caso a reforma de Temer entre em vigor, está a possibilidade de reduzir o intervalo mínimo de descanso e alimentação de uma hora para meia hora no caso de jornadas de mais de seis horas, assim como acordar jornadas de até 12 horas de trabalho seguidas de 36 horas de descanso. Outra possibilidade será a de combinar a divisão dos 30 dias de férias em até três períodos, bem como troca de dias de feriado.
Se a nova legislação entrar em vigor, será possível ainda que empregados e trabalhadores negociem diretamente plano de cargos e salários e o pagamento de participação dos lucros. Também poderá ser alvo de acordo a prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho.
“A redução do intervalo de almoço para 30 minutos, por exemplo, parece algo pequeno, mas fazer uma pausa correndo tem impacto na saúde do trabalhador e aumenta os acidentes de trabalho”, diz Costa.
Proximidade com o PT
A CUT nasceu pouco depois do PT, fundado em 1980, e tem forte relação com o partido. Apesar disso, não conseguiu avançar com sua pauta de reforma sindical nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e de Dilma Rousseff (2011-2016), até pela falta de consenso com outras centrais.
A proposta de Acordo Coletivo Especial, por exemplo, podia funcionar bem para categorias com representação forte, como os metalúrgicos, berço da CUT e de Lula, mas criava riscos para segmentos menos organizados, observa Queiroz.
Desde que se tornou presidente, o líder petista deu declarações contraditórias sobre legislação trabalhista, ora defendendo “modernização” da CLT, ora criticando sua “flexibilização”.
BBC BRASIL