Seja bem vindo!

Política de Estado Mínimo em processo de morte: sobreviverá ao coronavírus?

A pandemia causada pelo novo coronavírus revela para o mundo a incapacidade do capitalismo neoliberal fundado na especulação do capital financeiro e livre mercado, de enfrentar a crise humanitária global. A pandemia Covid-19 já matou 139 mil pessoas (até o momento em que escrevia esse texto), em sua maioria localizadas nas grandes potências mundiais, sendo o maior número de mortes nos Estados Unidos. Do ponto de vista das políticas, estas mortes têm revelado para o mundo o retumbante fracasso das políticas neoliberais de minimização do estado e consequente limitação do financiamento das políticas públicas de proteção social, posto em prática para fazer reinar o livre mercado. A questão é: esse fracasso da política neoliberal de Estado Mínimo será reconhecido ou levará a inspiração de novas engenhosidades de intervenção neoliberal no estado? Haverá um recuo tático do neoliberalismo no pós-pandemia?
No presente ensaio reflito sobre o processo de morte do Estado-Mínimo enquanto um dos pilares do neoliberalismo, ameaçado pela pandemia covid19 que vem escancarar ao mundo as entranhas da vulnerabilidade do livre mercado e da sua incapacidade de atender as necessidades da humanidade. Lançamos luz sobre a necessidade de um Estado forte de proteção social para sair do caos. Inicialmente farei um breve comentário sobre a ideia de Estado-mínimo enquanto projeto político para depois refletir sobre a sua incapacidade de sobreviver a pandemia.

A demissão do Estado e a admissão da empresa

É importante iniciar este tópico esclarecendo que a expressão “demissão do Estado” não tem a pretensão de afirmar o colapso do Estado, mas sim de chamar a atenção para as profundas alterações que ele vem sofrendo na redução da sua esfera de ação. Assim, o Estado vive um recuo de sua atuação no âmbito de provedor das políticas sociais, ao passo que ocorre um alargamento do espaço de atuação empresarial e internalização dos princípios do mercado no âmbito da esfera pública, portanto, uma admissão da empresa.

As primeiras décadas do século XXI revelam o fortalecimento do poder de conglomerados econômicos, que concentra riqueza, ciência e tecnologia capaz de instaurar uma matriz ideológica fundada no mercado como regulador de toda a vida social. É posto em prática um racionalismo de mercado que reduz todas as coisas à mercadoria e transforma todas as pessoas em agentes econômicos. O discurso de racionalismo de mercado é de um lado, extremamente poderoso e unificador de políticas e corporações econômicas; de outro lado, ele povoa o senso comum, impondo como significações legítimas as crenças e valores dos que detêm o capital econômico e cultural aos que não detém capital nenhum. É por essa incorporação sutil dos valores dos dominantes que a “Miséria do Mundo” (Bourdieu, 2012) se reproduz até mesmo entre os dominados.
Nesse novo modelo de reorganização do capital, ganham força, em vários países – inicialmente, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Austrália, e posteriormente na Europa Continental e Brasil – ideias neoliberais denunciadoras da ineficácia do Estado como provedor dos serviços públicos. No interesse de demolir a ideia de serviço público, o liberalismo econômico é apresentado como condição suficiente para a liberdade política, enquanto o intervencionismo do Estado é assimilado ao totalitarismo. Dessa forma, associa-se, de acordo com Bourdieu (2012, p. 217), eficácia e modernidade à empresa privada, e arcaísmo e ineficácia ao serviço público. Nesse sentido, uma aliança entre organismos multilaterais e instituições regionais põe em jogo forte poder econômico, político e ideológico que atua na implantação de um novo paradigma que prega o enfraquecimento do Estado, forçando o seu recuo em ações sociais estruturais que asseguravam os mais elementares serviços públicos, e na garantia de direitos, ao mesmo tempo que incentiva o consumismo, a produtividade, a competitividade e a eficiência valorizados pelo mercado.
Segundo essa lógica neoliberal, os conceitos empregados pelo setor privado são considerados mais eficazes e mais igualitários (livre concorrência), portanto devem ser assimilados pelo setor público que carece de “modernização”. Desse modo, mudam-se a linguagem e a concepção do que é ser público: a) a relação com o usuário transforma-se na relação com o cliente; b) os serviços públicos mais rentáveis são entregues à empresa privada, que fica protegida dos riscos financeiros, ocasionando uma restrição da esfera pública e uma ampliação dos espaços privados; c) os trabalhadores do serviço público são responsabilizados pela ineficiência e excesso de burocracia do Estado e atacados por se beneficiarem da função pública, construindo estatutos que os protegem contra os riscos da livre empresa; d) entra em curso um desmonte dos direitos sociais coerente com o ideário da desregulamentação, flexibilização e privatização. A defesa desse paradigma de gestão pública é que a aplicação de estratégias do modelo gerencial do setor privado resultará em eficiência, eficácia e produtividade nas instituições organizacionais.

O objetivo da lógica de diminuição do papel do Estado é arrancar-lhe todas as áreas capazes de gerar lucro, além de reduzir a quase zero os gastos com a gestão social da vida pública, o que significa se limitar a uma atuação do que Bourdieu (2012) chama de “caridade de Estado”, para designar uma política que visa simplesmente corrigir os efeitos da distribuição desigual de capital econômico e cultural destinada a uma parte de “pobres merecedores”. Vários países, inclusive o Brasil, se submeteram a essa lógica. Agora, em tempo de crise aguda provocada por uma pandemia a humanidade sofre as consequências, mais notadamente em virtude da ausência de um sistema público de saúde. A questão é: aprenderemos a lição e tomaremos o caminho de volta?

O Estado Mínimo incapaz sobreviverá a pandemia?

O que se tem visto no mundo é que os países que investiram no fortalecimento do Estado, no desenvolvimento de sólidos sistemas de saúde pública e de proteção social estão conseguindo minimizar os efeitos da onda devastadora da pandemia. Segundo Boa ventura de Souza Santos “ os governos com menos lealdade ao ideário neoliberal são os que estão a actuar mais eficazmente contra a pandemia, independentemente do regime político. Basta mencionar a Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e China (2020, 24-25)”.

Infelizmente, o Brasil caiu nas promessas ilusórias do neoliberalismo e deu prioridade ao mercado em detrimento do Estado. Mergulhou na privatização de áreas essenciais como água, energia, educação, saúde, desmontou o sistema de seguridade social, precarizou o Sistema Público de Saúde – SUS, reduziu investimentos em ciência e tecnologia, minando a capacidade do Estado em responder a qualquer crise. A partir de 2016, o governo brasileiro pôs em ação uma avalanche de desinvestimento em políticas públicas de proteção social e retirada de direitos da classe trabalhadora tornando a população cada vez mais indefesa. E para piorar o quadro de dificuldades diante de uma pandemia que já levou a morte mais de dois mil brasileiros(as), o presidente Jair Bolsonaro, ignora as recomendações técnico-científicas da Organização Mundial da Saúde e, de forma irresponsável, incentiva a população a romper o distanciamento social e promove a anticiência.

Quanto maior o grau de Estado-Mínimo, tanto maiores serão as consequências da pandemia na vida das pessoas e maiores a necessidade de aporte de recursos financeiros para socorrer as empresas e assegurar os empregos e renda mínima. Os países irão se endividar mais ainda para pagar os gastos com a pandemia e no final o povo vai pagar a conta a juros altos, caso não se aprenda a lição.

O período pós-pandemia será momento de escolhas que apontarão o quão estaremos preparados para as crises futuras. Ignoraremos o fracasso do Estado Mínimo colocando em curso mais políticas de austeridade e desmonte dos serviços públicos? Ou retornaremos o caminho e desenvolveremos um Estado forte que tome as rédias do mercado e cumpra seu papel de indutor e provedor de políticas sociais? Sobreviverá a pós-pandemia a política neoliberal de Estado Mínimo ou renascerá um novo Estado? As lições estão na nossa cara, resta saber se vamos aprendê-las.

Por Maria Marleide da Cunha Matias* *É Mestre em Educação pela UERN.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *