Immanuel Kant, o filósofo alemão, teria um troço assistindo aos depoimentos de ex-ministros na CPI da Pandemia. Ele acreditava que a mentira não era justificável em nenhuma circunstância. “Quando mente, um homem aniquila a sua dignidade”, dizia.
No seu depoimento de hoje, flagrei o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello em duas mentiras graves. Certamente as agências de checagem vão encontrar mais coisas.
A primeira diz respeito ao aplicativo TrateCov, que recomendava a adoção do “tratamento precoce” (que no jargão bolsonarista quer dizer cloroquina). O ministro se escondeu atrás de uma distinção fajuta entre protótipo e aplicativo para dizer que o TrateCov jamais entrou em operação. Se era protótipo ou produto acabado, pouco importa: ele foi lançado, teve propaganda na TV Brasil e treinamento de profissionais para usá-lo. Levou mais de uma semana para que fosse tirado do ar depois do lançamento.
A segunda mentira diz respeito ao processo de contratação de doses da CoronaVac. Segundo ele, o presidente jamais lhe deu ordem direta para cancelar a compra da “vacina chinesa”, no final de outubro de 2020.
O célebre post de rede social em que Bolsonaro escreveu com maiúscula que o imunizante não seria comprado, a entrevista do presidente com semblante transtornado dizendo que não abria mão de sua autoridade e já havia mandado cancelar a compra da “vachina” e a gravação em que Pazuello dizia abjetamente que “um manda e outro obedece” seriam tão somente manifestações políticas sem consequência prática.
A concepção bolsonarista de política é essa mesmo: um teatro calhorda feito aos gritos, para agradar baba-ovos e peitar adversários, sem nenhuma consideração pelas preocupações reais dos brasileiros – que só desejavam saber se, e quando, teriam vacinas para evitar mortes.
Mas o show de Bolsonaro e seu antiministro da Saúde tinha também um substrato real. Basta lembrar que em dezembro de 2021, Pazuello ainda excluía a CoronaVac dos planos de vacinação do governo. Fez isso, inclusive, em audiência no Congresso. Aliás, naquele momento, tudo que parecia sólido nas falas do ministro sobre o assunto era a rejeição à vacina do Butantã: o resto eram datas e nomes de imunizantes jogados ao léu. Só quando a Anvisa aprovou o uso da CoronaVac e ficou claro que o governador João Doria, odiado por Bolsonaro, havia ganho a corrida pelo início da imunização, o veto à “vachina” caiu.
Quanto a Ernesto Araújo, ele mentiu ao dizer que nunca promoveu atritos com a China, mentiu ao asseverar que manifestou desde o início interesse em participar do consórcio global Covax para distribuição de vacinas e distorceu descaradamente manifestações técnicas e oficiais da OMS, na tentativa de justificar as escolhas trágicas e negacionistas do governo brasileiro ao longo de toda a pandemia.
O teatro político asqueroso de Bolsonaro, bem como a incompetência e a má-fé de seus auxiliares, causaram muito mal aos brasileiros desde que a Covid-19 aportou por aqui. E as mentiras de Pazuello e Ernesto Araújo nesta semana? Elas são transparentes e acredito que a esta altura, feitas diante de uma CPI, só podem prejudicar a eles mesmos e ao presidente que eles tanto desejam proteger. Que assim seja.
Pensando melhor, acho que Kant não teria chilique nenhum se revivesse hoje em Brasília. Consta que ele era um sujeito muito contido e sério. Diz a lenda que seus vizinhos ajustavam o relógio conforme as suas caminhadas, de tão previsíveis e pontuais que elas eram. Com esse perfil austero, o filósofo provavelmente balançaria a cabeça diante de Pazuello e Araújo, concluindo que essa história de dignidade há muito não é com eles.