Editorial O Globo
Armar a população não é política de segurança, mas de morticínio
Faltam vacinas, mas sobram armas. O Brasil tem hoje 1,15 milhão de armas legalizadas nas mãos de cidadãos. O número representa um aumento de 65% em relação ao arsenal registrado pela Polícia Federal e pelo Exército em dezembro de 2018, antes da posse do presidente Jair Bolsonaro, como mostra levantamento feito pelo GLOBO em parceria com os institutos Igarapé e o Sou da Paz.
Pelos dados, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, o maior salto se deu nas licenças para pessoas físicas, sob responsabilidade da Polícia Federal: 72% (de 346 mil em 2018, para 595 mil no fim de 2020). Nos registros do Exército, que incluem caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), o aumento foi de 58% (de 351 mil para 556 mil).
Não se pode dizer que o presidente Jair Bolsonaro não esteja cumprindo uma de suas principais promessas de campanha: facilitar o acesso às armas, mesmo de guerra, como fuzis, antes restritas às forças de segurança. Também não se pode dizer que esse afrouxamento das normas para compra, posse e porte de armas tenha nos conduzido a um país mais seguro. Ao contrário.
Basta observar o cotidiano das cidades brasileiras, sobressaltadas por chacinas, feminicídios, assaltos cinematográficos, guerras entre quadrilhas, confrontos sangrentos entre policiais e bandidos e saraivadas de balas perdidas, que sempre encontram inocentes pelo caminho. Basta lembrar os nomes de Ágatha, Rebecca, Emilly, João Pedro e tantos outros, cujas vidas foram interrompidas brutalmente por essa desgraça que rouba o futuro de nossas crianças e adolescentes.
Não poderia ser diferente. Armar a população não é política de segurança, mas de morticínio. Nunca será. A esperança de haver alguma política séria para o setor morreu com a saída do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, em meio às pressões de Bolsonaro para interferir na PF. Restou o salve-se quem puder de cidadãos reféns da violência. No seu despreparo, Bolsonaro confunde armas com segurança.
De nada adianta alegar que essas armas e munições são legais e estão nas mãos de “cidadãos de bem”. Balela. Sabe-se bem o destino que tomam, indo parar nas mãos dos bandidos. O próprio Bolsonaro foi assaltado em 1995, e a arma não o protegeu. Foi levada pelos bandidos. As balas que mataram Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes saíram de um lote desviado ou roubado da Polícia Federal. Triste ironia: o Estado acaba por financiar o crime.
Cidadãos mais armados representam um risco que ainda não se mostrou nos indicadores de violência, mas certamente aparecerá depois da pandemia. Tarda, mas não falha. Uma hora a Covid-19 passará. Mas a epidemia de violência que fustiga os brasileiros continuará matando, sob o beneplácito do governo Bolsonaro. Ainda não se descobriu uma vacina contra a insensatez.