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A lógica da Lava Jato dilacera a racionalidade do STF

A ministra Carmen Lúcia está a poucas semanas de encerrar seu mandato como presidente do Supremo Tribunal Federal e aparentemente não vai conseguir realizar o principal de seus intentos: evitar que a Corte se apequene. Uma contribuição considerável a este fracasso se deu justamente pela adesão desenfreada em busca do prestígio popular a que parte do Judiciário se entregou sem perceber o seu potencial corrosivo.
A luta por engrandecer a Justiça, em resumo, se transformou em uma corrida do cachorro em busca do próprio rabo.
Por mais serviços que tenha prestado ao erário e mesmo à autoestima dos promotores, como resgate de uma tradicional noção de impotência contra réus poderosos – e não pretendo aqui discutir o mérito de nenhum das dezenas de processos dela derivados – é a lógica da chamada Operação Lava Jato, sobretudo, que tem dividido a Corte.
A ideia de que é preciso flexibilizar a lei para que se faça justiça, de que é necessário fragilizar os mecanismos de defesa para dar correto trâmite às acusações, de que o apoio popular é essencial para a obtenção de resultados justos.
A lógica Lava Jato envolve uma transposição da atuação dos operadores do direito de guardiães da lei, nos quais devem coexistir tanto os fundamentos quanto os limites da acusação, para um arranjo que mistura coragem, arrojo e, sobretudo, obstinação para alcançar o resultado.
Se é difícil obter a prova que demonstra autoria, suplanta-se por uma que apenas a insinua; se os mecanismos da lei impedem que se constranja a defesa, uma leitura inovadora pode abrir caminhos; se o apelo popular depende do conhecimento de dados sigilosos, fundamenta-se a divulgação. Enfim, se o sucesso da operação pode não ser replicado com segurança em outros processos, crie-se uma nova lei à sua imagem e semelhança –e falo aqui das malsinadas dez medidas do MPF, que sem sucesso pretendeu fazê-lo.
Parte considerável da procedência nas ações deveu-se às chamadas colaborações premiadas, por intermédio das quais a verdade é adquirida em troca de penas mais leves, regimes mais brandos e até reembolso de valores. Tal qual uma cascata, a ideia de delação acabou por entronizar a prisão provisória como regra de um processo penal para o qual havia sido criada como hipótese de exceção.
Foi justamente para preservar a higidez e a continuidade das delações que a ideia de “prisão após julgamento de segunda instância” foi incorporada artificiosamente às decisões, como se estivesse no texto constitucional desde sempre. E não fosse ela uma fissura no horizonte que o legislador havia imposto como cláusulas pétreas, inclusive a si mesmo.
É possível prender provisoriamente a qualquer momento do processo, até mesmo antes dele começar, desde que demonstrada a necessidade cautelar, como uma espécie de garantia para a normal realização do processo ou para a aplicação de suas penas. Mas porque era necessário que réus se sentissem fortemente intimidados com a proximidade da prisão e não pudessem apostar eles mesmos em uma decisão dos tribunais superiores, operou-se uma mudança de entendimento, muito mal absorvida pelos membros da Suprema Corte.
A ética de resultados pode estar contaminando decisões processuais. O ministro Marco Aurélio, há 28 anos na Corte, afirmou recentemente que nunca viu manipulação da pauta como esta.
Os fatos podem lhe dar razão. Dependendo da decisão que se espera, julga-se um processo individual ou uma ação direta com efeitos para todos; de acordo com a sentença que se aguarda, a competência para o julgamento vagueia das turmas para o plenário ou vice-versa.
Independente do lado que se esteja, das preferências ideológicas ou visões jurídicas que se tenha, é muito difícil não constatar que o STF está perto de se transformar em um tribunal ad-hoc, daqueles que julgam de acordo com as partes, o momento político ou a pressão da mídia.
Os juízes, efetivamente, têm pensamentos diferentes e isso é parte integrante da democracia.
A independência, como dizia Eugenio Raul Zaffaroni, é uma premissa da jurisdição –existe, mesmo que não venha escrito em canto algum. E junto com o pluralismo que a Constituição também agasalha, impedem que um juiz seja punido por decisões jurisdicionais, ainda que o apelo ao controle ideológico e as tentativas de tutela do pensamento permaneçam extemporaneamente resistentes.
Mas o STF é um desaguadouro natural destas diferenças. Aos poucos, elas vão sendo corporificadas em jurisprudências que, diante da construção eminentemente coletiva, do amadurecimento judicial, costumam angariar respeito.
Assim foi o STF quando firmou em 2009 que, diante da interpretação que, em outros processos e temas correlatos já vinham fazendo os ministros, que não podia haver, como é expresso o texto constitucional, tratamento ao réu como culpado, antes de sua condenação definitiva – exceto quando presentes as exigências cautelares. Com base nesta interpretação, fruto de um amadurecimento gradual nos vinte anos de aplicação da Constituição, a própria lei foi alterada, aprovando projeto encaminhado ainda em 2001, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que congregava o pensamento consolidado dos doutrinadores de processo constitucional.
Foi assim que se mudou o artigo 283 do Código de Processo Penal que vincula a prisão provisória à condenação definitiva, quando não presentes outros fundamentos.
Mas justamente a pressão política, jurídica e midiática da Lava Jato fez com que o STF decidisse, de afogadilho, alterar seu próprio e refletido entendimento: porque isso, enfim, poderia obstar futuras delações –o que foi defendido expressamente pelo ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot. Nessa época, Gilmar Mendes era o ponto de contato com o STF nesse campo – e foi ele justamente quem mudou de opinião.
Foi tanto de afogadilho a mudança que o STF nem se preocupou em dizer, enfim, se o artigo 283, do Código de Processo Penal – e outro de mesmo teor da Lei das Execuções Penais – estavam ainda valendo. E até hoje não se conseguiu saber porque o tema nunca é pautado.
O resto da história é mais ou menos conhecido. Com a deposição de Dilma Rousseff, Gilmar Mendes voltou ao garantismo que havia marcado seus votos (e algumas das principais decisões do plenário do STF) e teve que se desdizer até em certos processos em andamento, como foi na apreciação da perda de mandato da chapa vencedora no TSE, quando isto significaria não mais a deposição da presidenta, como supunha até então, mas agora de seu vice.
A partir desta decisão, Gilmar incorporou, sem pudores e até com coragem, que isso fique consignado, o figurino de inimigo do povo, reassumindo, de uma forma um pouco inusitada, a função contramajoritária que é da essência do papel do juiz criminal. O julgamento ad-hoc, o controle da pauta, a estratégia de alteração de competência, o apelo ao sentimento popular. A ética de resultados é a convidada indesejada na agenda de um tribunal que jamais pode se apequenar.
Mas a verdade é que o se pode chamar de lógica Lava Jato dilacerou a racionalidade do STF. E ainda vai demorar um pouco para juntar os cacos.
Marcelo Semer, juiz de Direito e escritor, mestre em Direito Penal pela USP e também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

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