Antes mesmo de completar 40 anos, Oriol Mitjà, infectologista e pesquisador da Fundação Luta Contra a AIDS, já enfrentou mais de um inimigo invisível ao olho humano. Vírus e bactérias são o seu negócio. O médico encontrou em um velho antibiótico a cura para a bouba, uma doença tropical que gera deformações ósseas e úlceras que desfiguram o rosto. Também mantém aberta uma frente contra a bactéria da sífilis, prima-irmã da que causa a bouba. E agora, como se fosse pouco, assumiu a liderança, ao lado de Bonaventura Clotet, de um estudo na Catalunha para interromper a cadeia de transmissão do coronavírus administrando um antiviral para os casos positivos e outro antimicrobiano para seus contatos próximos.
Mitjà, que há semanas vem estudando o avanço da pandemia e advertindo para o elevado risco de transmissão, tornou-se o flagelo não só de vírus e bactérias, mas também dos gestores sanitários que pilotaram a crise do coronavírus. No Twitter, pediu a demissão do comitê de emergência espanhol. O médico fala com o EL PAÍS do seu centro de operações, nas instalações do hospital Germans Trias i Pujol, em Barcelona. Tudo, claro, por videoconferência, para reduzir o contato ao mínimo – só algumas fotos presenciais – e predicar pelo exemplo. As medidas de isolamento social reduzem os contágios, insiste.
Esta crise sanitária era evitável?
Resposta. Sim. Houve falta de antecipação e incapacidade para fazer previsões e predições epidemiológicas de uma epidemia evitável. Não evitá-la acarretou consequências na saúde pública, e essa, em termos médicos, é a definição de negligência.
Você vem há semanas advertindo que o risco de transmissão do coronavírus era maior do que diziam as autoridades. O que via em seus modelos matemáticos?
A transmissão de uma infecção depende de três fatores: o número de contatos que uma pessoa tem, a capacidade de transmissão do agente patogênico a capacidade de infecção. Usando estes parâmetros, logo percebemos que um só caso em uma localidade poderia semear uma epidemia, e a chegada de três casos era um risco de até 60% de que houvesse um surto em nível local. Quando há 20 ou 30 casos, já é incontrolável e é preciso adotar estratégias de controle mais agressivas.
Sempre nos disseram que era impossível que chegassem casos importados. Quando chegaram, disseram que não haveria casos nativos. E, quando foram nativos, disseram que as cadeias de transmissão poderiam ser contidas com ferramentas de saúde pública muito fracas, como o isolamento de casos e contatos. Ao final, a epidemia cresceu.
O que falhou? Foi medo, excesso de confiança, talvez?
Não tenho certeza. Parece que, desde o momento inicial, não tivemos a capacidade de fazer análises epidemiológicas detalhadas para compreender qual era a situação. Apoiamo-nos no número de casos que havia no dia a dia, em lugar de predizer o que poderia acontecer no futuro. Essa mensagem de calma foi prejudicial para fazer um planejamento adequado. Se você toma as decisões com base no número de casos que vê naquele dia, já faz uma semana que esses casos se infectaram, e significa que neste momento já está muito pior. E para poder se sobrepor a uma epidemia destas características, você precisa estar à frente da epidemia. Parece que sempre fomos nos arrastando, lá atrás.
O que deveria ter sido feito?
Há diferentes estratégias. Países diferentes tomaram medidas distintas, mas todas contundentes. A China fez um confinamento maciço, mas a Coreia do Sul o que fez foi fazer centenas de milhares de exames para detectar os casos muito cedo.
Aqui [na Espanha] houve três erros: primeiro, uma incapacidade para fazer previsões; segundo, um erro da comunicação, que foi opaca e prejudicou os gestores e planejadores sanitários para poderem se preparar e tomar decisões antes que a crise chegasse, e não durante; e, terceiro, as dúvidas na hora de tomar decisões críticas porque é preciso ser taxativo e executar os planos sem perder tempo em reuniões e hesitações.
As medidas atuais são suficientes ou estão sendo negligentes?
Nos últimos três dias começaram a ser tomadas medidas, mas a situação é grave porque deixamos que a epidemia avançasse muito. Encontramo-nos numa situação em que há falta de material médico, superlotação dos hospitais, um crescimento incessante no número de casos porque o confinamento não está sendo efetivo e um movimento de populações infectadas que estão saindo de zonas altamente epidêmicas para outras regiões da Espanha, como é o caso de Madri e viajantes que foram à Galícia e à costa de Valência. Por isso agora as medidas necessárias são mais agressivas, e as que foram tomadas até hoje são insuficientes.
Que mais se pode fazer?
Fico assustado de saber que o metrô de Madri e Barcelona estava cheio de gente indo trabalhar. É preciso parar todo o transporte público. Não pode ser que haja transporte urbano e entre cidades, porque aumenta o risco de propagação da epidemia em diferentes regiões. É preciso parar todo o trabalho, embora seja um esforço econômico vale a pena fazer o sacrifício agora para não prolongar a agonia.
Se fizermos as coisas direito, em duas semanas, poderíamos reduzir a transmissão significativamente. A China conseguiu reduzir nesse tempo em 55% a taxa de reprodutibilidade básica.
E depois?
Uma vez passadas as duas semanas, esse pico epidêmico, e quando assegurarmos que os hospitais tomaram um pouco de fôlego e volta a haver leitos livres, pode-se voltar a abrir o país, mas tomando medidas de precaução. Pode-se fazer um plano de sustentabilidade, com capacidade para identificar surtos rapidamente e potencializar o uso de testes diagnósticos se por acaso houver algum rebrote e detectá-lo logo.
Alguém tem que assumir responsabilidades por esta crise?
Sim. É necessário que haja uma troca nas pessoas que estão dirigindo esta crise e um novo plano de ação, no qual ninguém tenha medo de agir ou executar ações. O país está na UTI e o médico que o trata cometeu erros. É melhor mudar de médico enquanto estivermos a tempo e não se lamentar quando não houver solução.
O coronavírus veio para ficar?
Sim. A primeira onda é mais grave porque nos pega pouco preparados, não temos mecanismos para responder a ele e afeta um maior número de população porque não desenvolvemos imunidade. Tampouco tivemos capacidade de desenvolver ferramentas para combatê-lo, como fármacos ou vacinas.
Esperamos que, quando o verão [europeu] chegar, haja uma redução dos níveis de incidência, e no inverno que vem já estaremos preparados porque teremos protocolos, conheceremos o vírus e teremos ferramentas para combatê-lo.