Para quem labuta por mais inclusão no país, principalmente a inclusão na escola, o tema da redação do Enem foi motivo para festa com banquete, uma vez que coloca os desafios da deficiência, com ênfase na sensorial, no centro das atenções de milhares de jovens postulantes a uma vaga nas principais universidades brasileiras.
Isso sem falar que arrasta o assunto por pelo menos um ano para holofotes de cursinhos, reuniões familiares e discussões entre amigos.
Por outro lado, a empreitada de escrever sobre um assunto cheio de nuances e tão pouco presente nos calorosos embates da atualidade pode ter exposto candidatos a riscos de cometerem uma série de impropriedades, como a de achar que todo surdo precisa aprender libras, que escolas “só para eles” seriam solução, que a língua de sinais é uma reles transformação da língua portuguesa em sinais, entre outros.
O universo da deficiência é plural. Surdos, assim como qualquer “serumano”, têm suas peculiaridades, capacidades, inclinações. Há o que precisa de legendas (domina a língua portuguesa, faz leitura labial e é chamado oralizado), há o que para compreender uma mensagem precisa de janela de tradução para a língua de sinais –e, mais que tudo isso, não há apenas uma língua de sinais.
A solução que pode ter salvado o estudante de um vexame é o amparo nos textos de apoio, a extração e ampliação de suas ideias. A nota dez, porém, deve ser reservada ao postulante que conseguir desenhar a necessidade de uma escola para todos, que vislumbre o amparo tecnológico como mecanismo de apoio em sala de aula, que defenda a ampliação maciça do ensino de libras como instrumento de acolhimento sociocultural legítimo de pessoas com deficiência auditiva.
A questão aqui ultrapassa o debate dos direitos humanos e imagino ser um tanto arriscado ao candidato que defendeu que esse público precisa “se virar” para ser gente. Surdos são amplamente amparados pela Lei Brasileira de Inclusão em suas demandas diversas, com ênfase à educação digna.
O papel dos corretores da redação, neste ano, poderá ser tão tenso quanto aos dos concorrentes, pois a eles vai caber não só dominar conceitos da diversidade surda, como saber até onde cobrar de jovens estudantes o entendimento de realidades tão apartadas do convívio social pleno. Ganhará zero quem usar o termo surdo-mudo, uma vez que ele é incorreto?
Se algum professor “acertou” o tema da redação deste ano com precisão, uma vez que até 2016 o próprio Inep, organizador das provas, desconhecia a necessidade de provas com o devido amparo para surdos, ele deve ser ovacionado.
Mas ante o possível desespero de “não saber nada sobre o assunto” e ter dançado na prova, vale pensar que quem exercita a prática de tentar compreender a realidade do outro, tentando entendê-lo e auxiliá-lo, poderá se dar bem não só no Enem, mas em todos os exames que pretendam abrir portas de oportunidades durante toda a vida.
Folha de S. Paulo