A indignação demonstrada por bolsonaristas nas redes sociais contra a última capa da Revista Isto É, que apresenta o líder maior dos radicais no Brasil associado a uma série de crimes durante a pandemia de Covid-19, não passa de mera ilusão. A atuação de pessoas comuns ensandecidas e rasgando o periódico nas ruas é performática. Retrata, na verdade, um movimento psicanalítico mais profundo – a denegação da dura realidade renitente a qual se associaram. Em suma, não é o presidente Jair Bolsonaro que procuram proteger. São suas próprias humanidades.
A verdade não tem dois lados. O governo federal brasileiro ofereceu uma das piores respostas à pandemia do mundo. Não vem deste blogueiro a afirmação, mas de periódicos como science e nature. Ocorreu uma estratégia deliberada de aceleração de contágio da população, a partir da falsa ideia de que, se todo mundo contraísse o vírus mais rapidamente, os efeitos da crise gerada pelo novo coronavírus seriam menores. O resultado pode ser caracterizado em números. Enquanto o mundo obteve uma média de 117 mil óbitos, conforme o tamanho proporcional da nossa população, aqui faleceram mais de 600 mil. Apesar do presidente tentar dizer que morreu gente em todo canto, para tentar naturalizar as mortes, o dado concreto é que por qualquer critério utilizado o quadro estabelecido no país é bem mais negativo do que é visto lá fora.
E há uma parcela dos brasileiros, composta por quem agora se deixa filmar jogando uma revista no lixo – como se a denúncia desaparecesse com a ação -, que se associou ao crime coletivo. Diante de todas as evidências, o militante de funerária ficou durante meses chamando o vírus, assim como o seu mito, de gripezinha inventada pela mídia. Não contente, espalhou mentiras como aquela, por exemplo, que alegava que os caixões enterrados não tinham pessoas, mas pedras. Hospitais vazios feitos apenas para roubar pelos governadores e prefeitos, de acordo com a narrativa da morte, foram invadidos com o objetivo chamado presidencial.
Quando já era rasgada a necessidade de ficar em casa e estabelecer outras ações de proteção, Bolsonaro e seus seguidores engrossaram o coro funebre – e o exemplo – do “pode ir para rua”. Como quem tem vida tem medo, os bolsonaristas não pensaram duas vezes em retirar os brasileiros de casa, assinando embaixo a farsa do medicamento para verme que blinda o indivíduo contra um vírus. E, caso adoecesse, era só tomar cloroquina. Ela cura. Os mais reiterados alertas de agências sanitárias nacionais, internacionais e estudos dos principais centros de pesquisa do mundo foram desqualificados com uma onda de notícias falsas.
Fronteiras internacionais ficaram abertas numa boa. A União entrou na justiça – e conseguiu – para que governos estaduais fossem impedidos de parar turistas e medir uma simples temperatura. A tão repisada política de testagem, capaz de quebrar a cadeia de transmissão, identificar e isolar doentes, nunca foi buscada. O Brasil até hoje é um dos países que menos testa para covid-19 no mundo.
Durante a pandemia ocorreu um genocídio dos povos indígenas. Apesar das decisões judiciais, o governo federal manteve sua política de fazer vista grossa para a multiplicação de garimpeiros em áreas de reserva. Contaminado, ao indígena foi negada assistência, UTI e até água. Só o que receberam foi cloroquina, a droga que também entorpeceu os pacientes mortos por asfixia no estado do Amazonas e fora aliada a outras medicações ineficazes contra o coronavírus com a perspectiva de negar aos usuários de planos de saúde ações sabidamente eficazes porque consideradas onerosas.
O negacionista em tempo integral fechou sua incursão com a foice da morte, atrasando em meses a vacinação no Brasil. Pressionado porque sua luta pela formação de um movimento antivacina no país não pegou, procurou deslegitimar a importância das vacinas. Aliás, o que faz até hoje. Enquanto doentes morriam de uma patologia para a qual já existia proteção, Bolsonaro atacava a China, a Organização Mundial de Saúde e recusava dezenas de ofertas de imunizantes. Não havia falta de vacina, não existia carência de recurso para comprar. Tanto que a única a interessar o governo federal era a mais cara e não aprovada pela Anvisa. Ainda estava em campo a concepção de que a contaminação era o melhor caminho.
O bolsonarista apoiou em parte ou integralmente o que foi descrito acima. E, mesmo com toda a situação escancarada, ainda engrossa as fileiras ao lado da montanha de cadáveres que representou a pandemia no Brasil. Só que eles sabem o que fizeram no verão passado.
A história está repleta de exemplos. Contextos pós-autoritários ou de grandes tragédias são marcados pela busca do afastamento da crítica e pela luta para reescrever os acontecimentos, com o indisfarçável desejo de salvar a ordem psíquica, política e social dos envolvidos. É que a realidade torna-se insuportável para os mercadores dela. Ocorrerá nos próximos anos. Ou melhor, a operação já se encontra em curso. Os bolsonaristas viverão de derivações, desculpas e inverdades.
Contra a artimanha da base sustentáculo do homicídio em massa, estabelecer o direito à memória é fundamental. Do contrário, amanhã acontecerá tudo novamente. O bolsonarista terá de conviver com o que apoiou.
Fonte: O Potiguar