Duas semanas após a Câmara dos Deputados aprovar um projeto de lei (PL) que, entre outras mudanças nas leis trabalhistas, autoriza mulheres grávidas a trabalhar em ambientes e atividades insalubres com risco “médio” e “mínimo”, representantes de entidades médicas criticaram o fato de não ter sido ouvidos sobre a proposta que, agora, está sendo debatida no Senado. Para especialistas, o texto aprovado pelos deputados é vago, restando aos senadores aprofundar a discussão para evitar prejuízos às trabalhadoras e empregadores.
Há um ano, com a sanção da Lei 13.287, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) passou a determinar, no Artigo 394-A, o afastamento automático da empregada gestante ou lactante de quaisquer atividades em locais insalubres, independentemente do grau de risco. O texto original da reforma trabalhista enviado pelo Executivo não mexia nesse item. No entanto, o texto aprovado na Câmara estabelece diferenciação entre os níveis de risco: mínimo, médio e alto.
Durante o trâmite do PL na comissão especial da Câmara, o relator do projeto, Rogério Marinho (PSDB-RN), acolheu uma emenda parlamentar que autorizava grávidas a trabalhar em qualquer ambiente insalubre, mesmo que de alto risco, desde que apresentassem um laudo médico atestando que o ambiente de trabalho não oferecia perigo nem à saúde da mãe, nem à do feto. Ao justificar a inclusão da emenda em seu parecer inicial, o deputado declarou que o afastamento de gestantes e lactantes dos ambientes insalubres é discriminatório e pode desestimular a contratação feminina.
Apesar da defesa da emenda, Marinho acabou cedendo à pressão da bancada parlamentar feminina e, em seu parecer final, aprovado no último dia 26, optou pela redação da emenda da deputada Laura Carneiro (PMDB-RJ), pela qual, sem prejuízo da remuneração, as gestantes devem ser automaticamente afastadas das atividades insalubres em grau máximo durante toda a gestação. Quando os riscos forem considerados médios ou mínimos, o afastamento deixará de ser automático, cabendo à gestante que julgar necessário apresentar um laudo, assinado por “médico de confiança”, que recomende a transferência dela para outra atividade.
Pelo texto aprovado na Câmara, as funcionárias que estiverem amamentando também vão precisar de apresentar recomendação médica de afastamento, independentemente do grau de periculosidade do ambiente laboral. Caso o empregador não consiga transferir a gestante ou a lactante para uma atividade que não ofereça riscos, a trabalhadora será afastada e receberá o salário-maternidade durante todo o período de afastamento.
À Agência Brasil, o deputado Rogério Marinho disse que, em vez de proteger a gestante e o nascituro, a atual legislação criou mais dificuldades para a mulher ingressar e permanecer no mercado de trabalho. Marinho afirma que o tema foi amplamente discutido na Câmara e que, se entidades médicas não foram consultadas, é porque “o projeto não é inovador, apenas explicita a norma em relação à empregada gestante no ambiente insalubre”. Leia aqui a entrevista completa do deputado.
No Senado, o texto tramita como Projeto de Lei da Câmara (PLC) 38/2017 e será analisado por três comissões: de Assuntos Econômicos; de Constituição, Justiça e Cidadania e de Assuntos Sociais. A versão aprovada pelos três colegiados seguirá para votação em plenário, em um único turno, por maioria simples e, na sequência, se aprovado, vai para sanção presidencial. No entanto, se o texto aprovado na Câmara for modificado no Senado, o projeto volta para análise dos deputados. Se rejeitada pelos senadores, a proposta será arquivada.
Retrocesso
A presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), Márcia Bandini, classifica de retrocesso a mudança na lei, um ano após o país ter decidido proteger as trabalhadoras grávidas e lactantes. “Deveríamos estar lutando para que os ambientes de trabalho sejam todos sempre seguros, e não para definir, dentro de um ambiente de trabalho insalubre, o que é risco grave, médio e mínimo”, disse Márcia.
Ela criticou a velocidade com que a proposta foi aprovada na Câmara. “Este é um tema complexo, cujas respostas não se resumem a um ‘pode’ ou ‘não pode’.” Segundo a médica, o texto aprovado pela Câmara fala de forma genérica em “laudo assinado por um médico de confiança”, o que significa que pode ser qualquer médico. “Mesmo que estejamos falando de obstetras, eles não têm obrigação de conhecer a legislação trabalhista, que é complexa. Eles podem se inteirar a respeito, mas, ainda assim, precisariam conhecer o ambiente de trabalho em questão para dar um laudo com segurança. Ou seja, o obstetra vai precisar da ajuda de um médico do trabalho, o que remete a outro problema: a dificuldade de acesso à medicina do trabalho no Brasil”, afirmou a médica.
“Na prática, as micro e pequenas empresas – as principais empregadoras – não têm um médico do trabalho à disposição”, ressaltou Márcia.
Aplicação problemática
Para o diretor de Defesa e Valorização Profissional da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Juvenal Barreto Borriello de Andrade, só será possível afirmar se a proposta de mudança beneficiará ou prejudicará as trabalhadoras depois que o texto definitivo da lei for aprovado e sua aplicabilidade for avaliada.
“Uma coisa é a redação da lei. Outra, sua aplicação. Seguramente, isso vai ser um problema porque, pelo que vimos até agora, a lei não esmiúça todas as possibilidades. Preocupo-me com as exceções que vão surgir no dia a dia”, afirmou Borriello, que se mostrou preocupado com a possibilidade de, a pretexto de aperfeiçoar a lei, o Congresso transfeirir dos “legisladores para os médicos a responsabilidade de graduar os níveis de periculosidade sem que estes estejam presentes no dia a dia do ambiente de trabalho”.
De acordo com o médico, a Febrasgo está acompanhado o debate no Congresso Nacional, mas não foi convidada a contribuir. “A hipótese de a Febrasgo tomar alguma atitude proativa chegou a ser aventada nas reuniões da diretoria, mas não chegamos a uma decisão. Até porque, não sei se conseguiremos ser ouvidos, mas devemos tentar ser ouvidos antes da mudança”, disse Boriello.
Ele explicou que, atualmente, para avaliar se determinada atividade oferece risco e se a gestante está apta a exercê-la, ginecologistas e obstetras levam em conta as informações fornecidas pela paciente. “Quando consideramos que paciente não está apta, cabe à empresa remanejá-la para outra função. Com a mudança, vamos precisar de um tempo para verificar se as empresas terão condições de absorver essas mulheres em outras funções. Ou se, quando considerarmos que elas devem ser transferidas, acabarão sendo afastadas por um período além da licença-maternidade – correndo o risco de perder seus empregos”, acrescentou.
Positiva para lactantes
Presidente do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Elsa Giugliani considera que a mudança na lei tende a ser positiva para as lactantes, mas defende mais discussão sobre o assunto.
“Não dá para colocar em um mesmo pacote gestantes e lactantes. Diversos estudos apontam os riscos da exposição de grávidas a ambientes insalubres. Já no caso de lactantes, praticamente não há nada conclusivo. Não existem certezas sequer sobre o que é de fato insalubre para a mulher e para a criança em fase de amamentação. Precisamos de mais informações, mas apenas estender às lactantes a proibição que se aplica às gestantes pode causar prejuízos econômicos e sociais às trabalhadoras que estejam amamentando – até porque o recomendável é que as mulheres amamentem por, no mínimo, dois anos.”
Elsa disse que a proposta aprovada na Câmara é pouco clara e gera dúvidas sobre a efetiva aplicação das normas, caso os senadores não façam ajustes no texto. “Quem vai dar o laudo médico à gestante? Os obstetras terão condições de recomendar sozinhos o afastamento, ou vai ser necessária a atuação conjunta com o médico do trabalho, que é quem mais entende do assunto? Minha preocupação é que, ao flexibilizar a lei para a gestante dessa maneira, coloquemos em risco a saúde da grávida e do feto.”
Conselho Federal
A discussão sobre a mudança no Artigo 394-A e de outros pontos da CLT que afetam diretamente a saúde do trabalhador está na pauta da próxima reunião plenária do Conselho Federal de Medicina (CFM) na semana que vem, em Brasília. Ao final do encontro, na sexta-feira (19) a entidade deve divulgar nota sobre o assunto.
Agência Brasil