Fabio Marton
Não é loucura perguntar; muita gente se fez isso enquanto Hitler estava vivo
Dá para prever que uma parte dos leitores está engasgando com o café – “Como assim?! A definição de extrema direita é ilustrada com suásticas!”. E outra está dizendo: “Finalmente!”.
Os nazistas definitivamente não eram amigáveis aos esquerdistas. Hitler conquistou o poder absoluto ao – é o que acredita a maioria dos historiadores – incendiar o Reichstag para acusar os comunistas.
Em seu regime, ser comunista era motivo para ser mandado para um campo de extermínio, mesmo destino que o dos judeus.
O antissemitismo, porém, não tem sinal. Historicamente, estava ligado a radicais religiosos, vistos como de direita. Mas o termo foi criado por um ateu anarquista descrevendo suas próprias ideias, o alemão Willhelm Marr (1819-1904), que achava que o capitalismo era uma conspiração dos judeus e que eles eram incompatíveis com as lutas dos trabalhadores.
Marr se arrependeu no fim da vida. Mas, décadas após seus panfletos incendiários, os nazistas estavam defendendo basicamente essas ideias.
Quem diz que o nazismo era de esquerda costuma se basear na parte econômica. E, de fato, o regime era totalmente avesso ao liberalismo econômico que hoje é visto como de direita – inclusive porque, para eles, Wall Street era uma conspiração de judeus.
Membros do Partido se manifestaram abertamente contra valores “burgueses” – particularmente Goebbels. Os nazistas toleravam a propriedade privada, mas também defendiam massiva intervenção do Estado na economia, com obras públicas para oferecer pleno emprego e um extensivo sistema de bem-estar social. Reservado aos “arianos”, claro.
Em sua origem, a ultradireita parece ter sido uma mutação da ultraesquerda. Mussolini começou sua carreira como um membro do Partido Socialista Italiano, que acabou expulso por defender a entrada do país na Primeira Guerra. Em 1919, Hitler participou da República Soviética da Bavária, um projeto comunista que naufragou em menos de um mês. Ambos saltaram do esquerdismo para o nacionalismo, e nunca foram políticos conservadores tradicionais.
Eles queriam uma revolução, não reforma. “O movimento surgiu com um viés de esquerda”, afirma o historiador Rodrigo Trespach, autor de Histórias Não (ou Mal) Contadas da Segunda Guerra. “Alguns pesquisadores consideram marxismo e nazismo como movimentos irmãos e, na época, industriais alemães achavam o partido nazista de esquerda.”
Fechamos então que o nazismo era de esquerda? Alto lá! Economia não é tudo. Se tanto nazistas como comunistas acreditavam num Estado totalitário, uma reengenharia completa da sociedade, há que se perguntar qual era o objetivo final dessa empreita.
Comunistas acreditavam que sua “ditadura do proletariado” era a fase intermediária em direção ao comunismo em si, uma sociedade sem Estado ou classes sociais, onde todos trabalham pouco e não há especialização de funções – um sonho idêntico ao dos anarquistas.
Para nazistas, o totalitarismo não era fase, mas a utopia em si. Um Estado absoluto que guiaria a sociedade contra a corrupção amoral tanto do capitalismo quanto do marxismo.
Com a eliminação dos elementos indesejáveis, a pureza genética levaria à raça perfeita, que criaria a civilização perfeita. Tão perfeita que o conflito de classes seria irrelevante: não importa sua condição social, todos seriam felizes sob o sol da suástica.
Os dois socialismos, o nacional e o soviético, rejeitavam o liberalismo democrático como uma farsa. Mas o comunismo o fazia porque acreditava que o liberalismo havia falhado em manter sua promessa de igualdade.
Quanto ao nazismo, rejeitava a igualdade por princípio: o que vale são os genes, algumas raças e países são melhores que outros. Há uma hierarquia natural e hereditária, vinda dos genes. No topo dela, o Führer, que representa o espírito do “povo”.
A rejeição da igualdade por princípio é reacionarismo no sentido mais tradicional. É um discurso parecido com o dos que defenderam o absolutismo. A separação mais clássica entre direita e esquerda vem da Revolução Francesa, quando nobres e o clero se sentaram à direita e plebeus, à esquerda na Assembleia dos Estados Gerais.
O nazismo então é “de direita”? Ou, já que é “de esquerda” em economia, seria “de centro”?
Nessa hora é melhor deixar a velha regrinha política de lado, a que se usa para separar amigos e inimigos no Facebook, e notar que muita coisa mudou desde os tempos da guilhotina. Não existe continuidade real entre comunistas e anarquistas, defensores da ditadura brasileira e neonazistas. Nada impede alguém de ser a favor do aborto e da economia de mercado ao mesmo tempo.
O próprio Hitler dizia que o nazismo não era nem de esquerda, nem de direita. Como diz Rodrigo Trespach, “a verdade é complexa demais para definir nesses rótulos. Não gosto deles”.
Uma opção é enxergar a opinião política num plano cartesiano, não vetor. É o que se faz nos sites politicalcompass.org e nolanchart.com, dividindo as opiniões entre esquerda e direita (econômica), libertarismo e autoritarismo. Hitler aparece no centrão em economia, mas no extremo da linha do autoritarismo.
Ainda assim, parece falho. Putin e Trump também são centristas autoritários. Seriam os três iguais?