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Carpintaria modelo

O SERROTE ESTAVA FURIOSO, exasperado e abordido.  E com razão. Trabalhara tanto tempo para o seu Antão das Cabritas e agora, velho, fraco e enferrujado, o homem lhe colocava de lado, sem maiores explicações. E os bons serviços que prestara, em sua carpintaria, por mais de sessenta anos? Acaso não contavam? Pelo visto e diante dos acontecimentos, não. Lembrou-se, de repente, que começou novinho, antes de completar quinze anos.  Saíra da casa dos pais, em busca de novos horizontes. Não conseguira. Parou junto com outros de sua raça, na loja armazém de seu Bartolomeu Azevedo. Foi dali que, três dias depois, aportou de mala e cuia, na famosa Carpintaria Nossa Senhora das Graças, de propriedade do seu Antão das Cabritas e seus seis filhos, Antônio, Alberto, Ariovaldo, Alécio, Arnaldo e Alípio.
Logo que chegou à nova morada, se viu, de imediato, dependurado pelo pescoço, num gancho feio e torto arrumado às carreiras numa parede de madeira. Esta parede fazia parte de uma espécie de cômodo disposto em três barracões tipo dispensas que se interligavam entre si por corredores internos. De uma dezena de bocais presos ao teto, lâmpadas macilentas fingiam clarear o ambiente com uma espécie de luz mortífera e adoentada. Em companhia a elas, ventiladores elétricos zumbiam incansáveis fazendo com que o ar ficasse mais exausto e cadavericado.   Seu Antão das Cabritas pensara em tudo. Construíra as três unidades nos fundos da sua residência e a morada dos filhos. Um passadiço comprido, coberto por telhas vermelhas acessava as residências sem precisar andar muito para se chegar aos locais de destino. Logo que chegou, Serrote teve o prazer de conhecer o Martelo, rapaz simpático e comunicativo, de quem se tornou amigo inseparável. Não fosse o Martelo, teria morrido dentro de um alheamento que prestes se tornaria aflitivo e devastador.
Depois de Martelo, com o correr dos meses e anos, aportou com as suas gentilezas ímpares, o Formão Chanfrado, o Gig Gabarito, o Esquadro, o Bedame, o Martelete Rompedor e o quarteto de moças alegres e simpáticas, as senhoritas Lima, Goiva, Plaina e Lixa. As demais peças que povoavam o ambiente, como o Enxó e a Suta, não deixaram por menos. De igual modo, se acastelaram cada um trazendo, a tiracolo, as suas afeições e acolhidas amoldadas e sem querer ou desejar nada em troca. A nova turma se tornou coesa e prometia ser entusiasmada e divertida. Nesta transição, os anos se passaram inexoráveis. Serrote se incluiu literalmente numa recém-construída família enquanto a sua verdadeira se perdeu para sempre nas profundezas do esquecimento. No grupo a que se juntara, se destacava a linda e esfuziante Escada. Jovem rebelde, magra, feia de corpo, porém, fina nas feições. Vivia constantemente com a matraca escancarada. Falava pelos cotovelos. Possuía, a bem da verdade, boa conversa. Sabia dialogar com desenvoltura e trazia novidades sempre que ia até a cidade. Ao contrário do Formão Chanfrado. Extremamente formal essa criatura abria a boca e mostrava seu sorriso maroto unicamente para formalizar o necessário.  Havia também a Plaina, uma senhora quarentona que (diziam os mais chegados), caminhava com os pés no chão e os dedos nas nuvens.
Lunaticamente romântica dona Plaina tinha sonhos de voar, conhecer novos horizontes, enquanto o Bedame, animoso e ousado, se abria feito mala velha em gestos suaves e elocuções delicadas. No fundo, meio funambulesco. Alienigenamente estrambótico e heteróclito (comentavam as fofoquinhas de subúrbios), mantinha um caso, às escondidas, com o Zé Mosquito Dengoso, um dos torneiros mecânicos a serviço da estirpe “dos Cabritas”. Ao lado dos três barracões, uma quarta construção toda em alvenaria, se erguia imponente recheada igualmente de bugigangas e quinquilharias. Nela moravam em harmonia comum, a Enxada, a Pá, a Picareta, as irmãs Vassouras com seus cabelos de Piaçava, o Rodo e suas borrachas de empurra água, os Panos de Chão e a prolongada geração Coca-Cola dos detergentes e Sabões em barra e em pó, além da Cândida e da Soda Cáustica. Destoando desta turminha, o sisudo Torno Mecânico.

Vivia este cidadão em seu canto, quieto, amuado, fechadão. Não falava com ninguém. Não sorria, não participava da mesa das refeições. Vez outra, trocava meia dúzia de palavras com o Graminho. O Martelo segredara à Serrote, que o carrancudo e insuportável se trancara em meio a quatro paredes, porque amava, com todas as suas forças, a Serra Craneana. Porém, até onde se sabia, jamais fora correspondido pela donzela, em face dela manter um romance com o mais novo dos irmãos Berbequins. De fato, na moita, tarde da noite, pelos cantos, ambos, SerraCraneana e o mais frangote dos consanguíneos Berbequins, apareciam juntos, de mãos dadas, aos beijos e abraços, sendo testemunhas somente as estrelas que piscavam intermitentes e se destacavam como sardas na pele macia da noite sem vento, e, claro, o Torno Mecânico que os espreitava por uma fresta da janela, enquanto metia o ferro sem dó nem piedade na pobre e indefesa Bancada.  Os irmãos Berbequins, por seu turno, não tocavam no assunto.  Sempre que interpelados por alguns dos moradores tidos como coscuvilheiros do pedaço, saiam pela tangente, à francesa.
Boatavam ainda, que o Metro e o Arco de Pua não conseguiram se manter fora das linhas certeiras das flechas do teimoso Cupido. Nesse baque, o Metro se apaixonara pela Verruma e o Arco de Pua pela sonsa e desajeitada Caixa de Ferramentas.
– Quem mais sofre de amor por aqui? – perguntou o Serrote para esquecer um pouco o seu ímpeto de raiva por estar sendo boicotado pelo seu Antão das Cabritas, dono da Carpintaria.
– Além destes que listei – balbuciou Martelo – à meia voz.  – O Medidor de Distância está com os quatro pneus arriados pela Grosa Rotativa Esférica.
– Que barato! Mas diga ai: e quanto a você, amigo Martelo? A mim me parece ter sido também atingido em cheio, pelo compadre Eros.
– Por quem?
– Eros, o deus do amor.
– Por certo. Afinal de contas, embora eu seja um simples martelo, apesar dos pesares, me considero filho de Deus.
– Quem é a felizarda?
– Deixa pra lá. Vamos mudar o rumo da prosa.
– Fala, meu querido. Sou seu amigo. Morre aqui.
– Tudo bem.  Caí na besteira de me enamorar da linda e admirável Faca de Alcatifa.
– Sério?
– Bota sério nisso!
– Com todo respeito, uma deusa a Faca. Só a vi por duas ou três vezes. Sabia que o prezado tinha bom gosto. Parabéns.
– Obrigado pelos elogios.  Sem parabéns.
– Como assim sem parabéns? Como anda o clima entre vocês?
– Não anda meu amigo. Capenga. Nosso amor, para começar, é impossível.  A Faca de Alcatifa não quer nadinha de nada comigo. Não bastasse, descobri que a danadinha tem uma queda muito grande pelo Nível.
– Credo, meu amigo! Logo pelo Nível?
– Pra você ver como são as coisas!
– Como meu velho tem aceitado as coisas? Vou refazer a pergunta: como convivem seus sentimentos com esta situação?
– Aos trancos e barrancos.
Nestes correres de anos e anos, o carcomido e imprestável Serrote apesar de amigos de todos, alimentava algumas birras das quais não conseguia se despregar. Uma delas, com o Alicate. Alicate se transformara num chato de galochas. Diante dos demais, se achava o todo poderoso. Trabalhava feito escravo, o infeliz, verdade seja dita. Seus afazeres iam de um simples cortar de uma ponta de fio, a ajudar os irmãos do senhorio a puxarem longos quilômetros de cabos ou a promover pequenas incisões e emendas espetaculares. À tarde, mal chegava do trabalho, o infeliz se enfurnava num canto e nada de participar com a galera das refeições e lengalengas. Tal fato se devia porque se enamorara perdidamente pela fogosa Coladeira de Borda Manual. Por conta disto, se aferrolhara em completo degredo.  Serrote a tudo via, ouvia e se calava.  Gentleman estremado não se metia em futricas para não ser malvisto pelos companheiros de infortúnio. Gostava, porém, de observar. Em um de seus registros, descobriu que o Sargento Tensor (apelidado de 5M- 3681) vinha despertando desejos incontidos na espalhafatosa Broca, aliás, uma paixão avassaladora e envolvente.
A coisa se tornara tão corriqueira e ao mesmo tempo caliente, que ambos, Sargento Tensor e Broca, não estavam nem aí para o que pudessem falar a respeito de seus encontros. Rolos e buchichos que, aliás, passaram de anônimos a olhos vistos se multiplicaram. Entretanto, sem mais nem menos, Broca endoidou. Trocou de lado. Virou o disco. Virou sapatona. Num abrir e fechar de olhos abriu seu coração para a Chave de Grifo, mesmo sabendo que o negócio dela, a sua alma se via aprisionada da bela encantadora e gostosa Trena de Auto Trava. Num jogo de vida ou morte, partiu para cima da deliciosa com todas as armas disponíveis, o que deixou Sargento Tensor e a Trena de Auto Trava furiosíssimos a ponto de, numa hora para outra, cometerem uma loucura cujo final seria maléfico para todos os envolvidos. Deu azar, claro. Graças a Deus. Sargento Tensor não quis mais papo. Preferiu o isolamento. Com ele trancou-se numa redoma de vidro. Nas poucas vezes que se dirigia aos colegas, praticamente monologava. Pelo mesmo atalho se embrenhou a Trena de Auto Trava.
As demais peças inquilinadas, como a Escala de Aço, o Cortador de Cantos, o Arco de Serra, o Destopador Para Fitas de Bordo e o Malho, cada um deles sobrepostos em prateleiras individuais, como a Morsa, o Triturador Forrageiro, todos, sem exceção, apesar de bem acomodados, se viam infernizados pelos pequenos meninos sapecas e endiabrados que faziam artes em séries: esses infantes, conhecidos no pedaço por Cabeças de Pregos e Parafusos pintavam o diabo. Essa turminha da pesada impingia um trabalho árduo e danado, notadamente ao Martelo, bem como os Parafusos, que criavam casos com as irmãs e as primas, as Porcas e as Roscas. Às vezes saiam nas tapas e beliscões.
Ao adjacente, no mesmo norte, um bando de Arruelas e Tachas que trabalhavam longe dali e saiam todos os dias antes das sete e voltavam quase depois das dez horas da noite. Apesar do adiantado das horas, pareciam com o cão chupando manga. Em paralelo, o pessoal dos barracões não gostava muito de uma Moto Serra que dividia o mesmo espaço comum a todos. Imponente, olhos indecifráveis, metida a besta, dona de si, passava pelos outros companheiros, de nariz em pé, toda posuda. Vivia derrubando árvores numa fazenda próxima e só a sua presença se constituía numa ameaça constante. Junto dela, unha e carne, o Machado e a Foice. Formavam um estranho companheirismo que os residentes apelidaram de “Trio Calafrio”.
Em contrapartida, bom de papo, amigo, camarada, e ótimo para dar conselhos -, seu Ancinho, apelidado de velho An. Para ele, o tempo estava sempre alegre. A maioria das ferramentas o respeitava como se fosse um pai. Seu Ancinho levantava cedo, antes dos demais e ia para o quintal enorme juntar as folhas que haviam caído das árvores durante a madrugada. Os barracões ficavam num quintal imenso. Ocupavam um terreno maior que um campo de futebol. A quinta se estendia convizinhada e abarcava, num grande amplexo, às casas do oitentão Antão das Cabritas e a de seus filhos Antônio, Alberto, Ariovaldo, Alécio, Arnaldo e Alípio. Os edifícios se destacavam construídos com arrojos e estilos ultramodernos. Seu Ancinho, melhor dito, o rapazola que trabalhava com ele, ou seja, que o manejava, era cego de um olho, mas no fundo, boa criatura. Quase fim de tarde lavava e enxugava as peças que o velho Antão das Cabritas e seus filhos usaram em seus afazeres e depois colocava numa espécie de mesa comprida de madeira para tomarem um pouco de ar. Quando havia sol, todos os ocupantes dos abrigos se beneficiavam da sua presença, porque ele vivia dizendo que até as ferramentas precisavam tomar nos costados um pouco de calor solar para se sentirem com vigor nas engrenagens.
Sobretudo, rejuvenescidas para o batente do dia seguinte. Serrote recorda com precisão milimétrica, nesses anos só chorou uma única vez. Foi quando o Martelo, mais a Peneira e o Esquadro, vieram lhe acordar, muito cedo, por volta das três horas da madrugada, com um estardalhaço dos diabos. O Enxadão havia se machucado num buraco que cavava no turno da noite, numa pedreira. O desventurado batera a cabeça numa pedra icebergueada. Por conta, estava inconsciente, no CTI da oficina de consertos. O Pereira, que a Glosa havia alcunhado de “quebra galho” procurava, a todo custo, um jeito de fazê-lo voltar aos afazeres. Serrote chorou, porque depois do Martelo, o Enxadão aparecia em primeiro lugar na sua lista particular de preferência de amigos do peito mais chegados. Enxadão além de bom companheiro se mostrava prestativo e legal.
Contava histórias engraçadas dos idos em que labutara na construção da rodovia que ligava à capital, das pessoas que conheceu e os muitos e muitos amigos que fizera e pelos reveses do destino, deixou esquecido na poeira do nunca mais. Infelizmente, as coisas nesta terra não são perfeitas. Na carpintaria Nossa Senhora das Graças, de seu Antão das Cabritas não poderia ser diferente. Tudo obedecia a um plano secreto de Deus, o Arquiteto Maior. Enxadão veio a óbito uma semana depois e se viu enterrado no mausoléu das ferramentas adormecidas no descanso do Criador Eterno. Encabeçando o funeral, Serrote e Martelo ladeados logo atrás pelos irmãos Berbequins, seguravam o caixão. Imediatamente à retaguarda, em fila indiana, os demais albergados vinham cabisbaixos e chorosos, desinquietos e compenetrados numa acerbidade fastiosa em face do rigor pesado do momento. Dois anos depois foi à vez de Martelo partir. Esta noite, a Carpintaria Nossa Senhora das Graças voltou a se enlutar. Desta vez a morte deu as caras para buscar Serrote. O pobrezinho faleceu sem se despedir de ninguém. Por ele, em choro e gritos em uníssono, a Chave de Grifo, a Trena de Auto Trava, a Morsa, as Porcas e Arruelas, as Roscas e Tachas, a Broca, a Lima, a Plaina, a Lixa, a Suta e a Bancada. Certamente, indubitavelmente, pode se dizer, sem medo de errar, as moças e senhoras as que mais sentiram seu passamento.
Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Da cidade de Pedro Canário, no Espírito Santo. 6-11-2018

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